15 jun 2012

Brasil cria vacina pioneira

Produto da Fiocruz previne esquistossomose e abre caminho para erradicar doença

O Brasil acaba de conquistar lugar de destaque entre os países capazes de desenvolver vacinas com grande impacto na saúde pública. Cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) criaram a primeira vacina capaz de evitar a esquistossomose, doença também chamada de barriga d’água e que atinge 200 milhões de pessoas no mundo. O IOC anunciou ontem no Rio a aprovação do imunizante, na primeira fase de testes com seres humanos, que garantem sua segurança e capacidade de induzir proteção. Agora, os cientistas partem para os testes em crianças e esperam oferecer o produto à população em até quatro anos. O feito traz esperança de erradicar a segunda doença parasitária mais devastadora do mundo, atrás apenas da malária, na classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS). A vacina — primeira completamente desenvolvida e patenteada por brasileiros — é também pioneira no combate a helmintos, parasitas ontra os quais creditava-se não ser possível produzir imunizantes, pois as substâncias que os afetam também costumam atacar tecidos humanos. Normalmente, os imunizantes disponíveis no mercado têm como alvo vírus e bactérias. As doenças provocadas por esse tipo de verme infectam mais da metade da população do planeta, de acordo com a pesquisadora que coordenou o projeto, Miriam Tendler. A vacina se mostrou eficaz contra fasciolose, uma verminose que afeta gado, e pode ser usada como base para criar vacinas para outras doenças humanas causadas por helmintos. O estudo, iniciado há 30 anos, isolou nos anos 90 a proteína-base da vacina, a Sm14, responsável por transportar lipídios do hospedeiro para o parasita, o que lhe garante energia para viver. Essa proteína estimula a produção de anticorpos que atacam o parasita. Sem energia,ele morre sem produzir novas larvas que contaminariam o meio ambiente por meio das fezes do caramujo hospedeiro. — A maior crueldade da esquistossomose, que é considerada uma doença negligenciada, é a magnitude: 200 milhões de infectados no mundo, 800 milhões expostos a riscos, a maioria em áreas pobres, e o Brasil é o maior país endêmico. As populações das regiões endêmicas têm que conviver a vida toda com a ela. Existem tratamentos, mas eles não melhoram este panorama. As pessoas são tratadas e se reinfectam — explicou Miriam, que destacou a importância de interromper o ciclo de vida do parasita.— A única doença erradicada até hoje foi a varíola e o que permitiu isso foi uma vacina. Ela acredita que, no máximo em cinco anos, seja possível imunizar a população dos locais onde ocorre a endemia. A vacina é produto da engenharia genética. Os testes clínicos de fase 1, que acabaram de ser concluídos, são os primeiros de uma vacina a serem realizados no Brasil e envolveram 20 voluntários adultos saudáveis. Eles incluíram três doses. A próxima etapa começa até o início de 2013 e será feita com 226 crianças não infectadas em áreas endêmicas no Brasil e na África.— O processo de aprovação na Anvisa foi muito longo, levou um ano e meio. O lote vacinal de testes foi feito nos EUA, numa tecnologia de alta qualidade e cara. O tempo que levamos para conseguir aprovação fez até perdermos o prazo de validade de algumas doses e não poderemos mais usá-las. Mas, em termos gerais, não houve grandes dificuldades — contou a pesquisadora. Apesar de ter sido todo coordenado por pesquisadores brasileiros, o desenvolvimento da vacina envolveu parceiros internacionais. Marcou também a primeira parceria públicoprivada da Fiocruz, que contou com financiamento da empresa Ourofino Agronegócios, interessada no desenvolvimento da vacina destinada ao gado. Miriam Tendler estima que, durante os 30 anos de pesquisas, foram investidos R$ 23 milhões. O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, acredita que a instituição aplicou mais R$ 20 milhões desde o início do estudo, que contou ainda com financiamento do CNPq e da Finep. A esquistossomose atinge cerca de 2,5 milhões de brasileiros em 18 estados, principalmente no Nordeste e em Minas Gerais. A doença pode matar, mas o nível de letalidade é baixo. Ela pode se manifestar nas fases aguda e crônica. Na primeira, mais comum, o paciente pode ter coceiras, dermatites, fraqueza, febre, dor de cabeça, diarreia, enjoos e vômito. Na crônica, o quadro pode ficar mais grave, com aumento da fibrose do fígado, aumento do baço, o que pode levar a hemorragias provocadas por rompimento de veias do esôfago e dilatação do abdômen.

Uma invenção com selo nacional e femininoPesquisas duraram 30 anos e esbarraram em dificuldades para conquistar credibilidade e respeito

A primeira vacina contra esquistossomose do mundo é resultado de 30 anos de esforços de pesquisas de cientistas brasileiros, comandados pela infectologista Miriam Tendler. À frente do projeto desde 1975, ano em que foi descoberta a molécula Sm14, proteína-base do imunizante, Miriam destaca a motivação dos trabalhos que, ela lembra, foram realizados numa área endêmica: — A esquistossomose é uma condição que atinge regiões com baixa infraestrutura sanitária e com populações de baixa renda, por isso é negligenciada,tem pouco interesse para a indústria. A vacina mostrou grande potencial para chegar ao mercado e, sim, queremos colaborar para erradicar a doença. O Brasil, onde há áreas endêmicas da esquistossomose, tem hoje um ambiente de pesquisas favorável, tanto em termos de infraestrutura e plataformas, quanto no que toca à regulação, que está se alinhando às exigências internacionais, na opinião da pesquisadora. Durante anos,no entanto, não foi assim. Surgiram dificuldades, que foram vencidas por meio de parcerias público-privadas e a busca por financiamento público, e os estudiosos também procuraram parceiros científicos na comunidade internacional. O fato de a primeira vacina parasitária do mundo ter sido desenvolvida por pesquisadores brasileiros, comandados por uma mulher, também tornou as coisas mais lentas. — Para estabelecer parcerias, primeiro precisamos conquistar credibilidade e respeito no meio internacional.Por se tratar de uma pesquisadora brasileira e mulher, as coisas ficaram mais difíceis — reflete a infectologista. O desenvolvimento do imunizante contou com o apoio da Organização Mundial da Saúde e de cientistas de universidades e centros de pesquisa americanos e europeus. A Comunidade Europeia participou de dois consórcios. No Brasil, colaboraram estudiosos do Instituto de Física da Universidade de São Carlos e da Universidade Federal de Santa Catarina. O Instituto Butantan foi parceiro na fase de produção da droga em escala industrial. Apesar de toda a colaboração internacional, o conhecimento que permitiu e coordenou os esforços brasileiro, o que garante à vacina o selo de primeira vacina humana completamente nacional. — Esse trabalho é resultado de muita persistência e garante o pioneirismo ao Brasil e à Fiocruz — comenta Paulo Gadelha, presidente da Fundação.    

Fonte: Jornal O Globo (13/06/12)

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